A Tutela Constitucional Ambiental como Direito Fundamental e sua Relação com a Separação de Poderes e a Reserva do Possível
- Eichenberg, Lobato, Abreu & Advogados Associados
- 24 de jan.
- 17 min de leitura
O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise sobre a tutela constitucional ambiental, levando em consideração o conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, a separação de poderes e a reserva do possível, aspectos inerentes ao tema da proteção ambiental. Com esse fim, através da pesquisa e revisão bibliográficas no âmbito do Direito Ambiental e Administrativo, faz-se uma análise sobre a evolução e dimensões dos direitos fundamentais e o papel do estado na efetivação de políticas públicas, considerando a sua compreensão moderna. Conclui-se que, no âmbito da tutela ambiental, a manifestação do Poder Judiciário para apreciar referidas demandas deve ser limitada à existência da política pública e seu potencial para o fim almejado, com o fim de não extrapolar a separação de poderes, aplicando-se a teoria da reserva do possível.
INTRODUÇÃO
A implementação dos direitos fundamentais de forma concreta é um desafio dinâmico e constante a ser enfrentado pelo Estado. Dinâmico porque a estrutura e amplitude dos direitos fundamentais é expansiva, aumentando com o curso do tempo esse rol essencial; constante pois a realidade não acompanha o ideal, isto é, existe uma diferença entre o reconhecimento dos direitos fundamentais pelo ordenamento jurídico e a sua efetiva concretização pelo Estado.
Concretizar direitos nada mais é do que tornar real aquilo que a lei – em sentido amplo – prevê em favor do indivíduo. Afirmar a existência do direito à saúde não significa que o Estado tem, de fato, a possibilidade de garantir à população um tratamento de saúde digno. Talvez por isso seria melhor que a nomenclatura fosse ‘direito à assistência’ ou ‘tratamento médico’, afinal, a saúde em si mesma não é possível garantir. De todo modo, de uma forma ou de outra, sabe-se que, no Brasil, há um longo caminho a ser percorrido para tornar real os anseios essenciais da lei, quiçá os ideais.
Essa realidade, contudo, não pode ser enfrentada com uma postura conformista no sentido de aceitar a ineficiência do Estado, mas deve, sim, servir de energia para se buscar soluções criativas e que encontrem amparo em nosso sistema constitucional de separação de poderes.
Atropelar competências em nome de um fim legítimo não é sintoma de uma luta justa; é diagnóstico de enfermidade da eficiência estatal que não podemos deixar que se conduza a um estado terminal.
Dentro dessa perspectiva, o presente artigo visa uma análise crítica acerca da tutela constitucional ambiental, tomando por base o conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, a separação de poderes e a reserva do possível, aspectos sempre presentes quando se debate sobre a tutela ambiental, sem olvidar da evolução dos direitos fundamentais e a compreensão moderna do Estado.
A partir dessa ideia, é preciso dispender linhas em determinados conceitos e como eles se relacionam com a tutela do direito ambiental.
A Evolução dos Direitos Fundamentais e o Papel do Estado
A proteção do meio-ambiente, embora não seja um tema necessariamente novo, ganhou maior importância nos tempos hodiernos, com destaque para as discussões sobre o impacto no clima com o aquecimento global e desastres naturais em grande escala (ANDRADE, et al., 2018, p. 4 e ONU, online).
Reflexo da importância do tema no tempo, a Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988, abrangeu a proteção ao meio-ambiental e lhe deu status de norma constitucional, mas o fez timidamente, por meio de um único artigo, o 225, dentro do Capítulo VI, do Título VIII – Da Ordem Social (BRASIL, 1988; ANDRADE, et al., 2018, p. 11-15 e GRANZIERA, 2015, p. 84).
A leitura do disposto no art. 225 da Constituição Federal permite concluir que a opção formulada pelo Constituinte representa a escolha de um modelo de Direito Ambiental que se preocupe de fato com a preservação dos recursos naturais e com a manutenção da sanidade do ambiente (ANDRADE, et al., 2018, p. 9)
Com efeito, é impossível negar a importância que a matéria possui, afinal, é um direito fundamental e cabe a todos a sua tutela, incluindo o Poder Público. (ANDRADE, et al., 2018, p. 6-10).
A proteção e promoção dos direitos fundamentais, embora não exclua – ao contrário – a responsabilidade da coletividade, tem como principal ator o Estado, já que os destinatários destes direitos são os indivíduos e é em face do Estado que tais direitos serão exigidos.
Por isso, com brevidade, é possível citar que tal conclusão é um reflexo da evolução histórica destes direitos (ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 3-8). Em um primeiro momento, naquilo que se convencionou chamar de primeira dimensão, houve a imposição de uma abstenção ao Estado, isto é, um papel negativo e de não interferência (ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 3) a isso se limitando a proteção dos direitos fundamentais.
O reconhecimento de direitos individuais civis (liberdade, propriedade, segurança etc.) e políticos foi paradigma do Estado liberal (voltado para assegurar um mínimo intransponível de liberdade do indivíduo em face do Estado) e continua a inspirar inúmeras constituições (ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 4)
Mas isso não foi suficiente para resolver os problemas sociais existentes. No contexto da primeira dimensão, se enxergava um Estado hipertrofiado e com ingerência abusiva e ilimitada sobre a vida dos cidadãos, mas é possível afirmar que esse distanciamento do Estado deslocou os abusos para outras relações sociais, materializados principalmente nas relações de trabalho com efeito de um aumento na desigualdade social (COMPARATO, 2008, p. 45-58).
O resultado disso foi a segunda dimensão de direitos (ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 4), que traz o Estado de volta ao protagonismo, sem abandonar totalmente os deveres de abstenção, impondo que, em determinadas circunstâncias, é dever do Estado interferir para garantir direitos sociais e coletivos, que interessam a uma parcela ou grupo identificável.
Nascia, assim, o modelo de Estado Social ou do Bem-Estar Social (voltado não apenas à garantia de um mínimo de liberdade, mas também para a efetiva promoção social), e, com ele, os direitos humanos de segunda geração (ou de segunda dimensão).
Por conta dessa nova geração, houve o reconhecimento jurídico dos primeiros interesses de dimensão coletiva, ou seja, que assistem a todo um grupo, classe ou categoria de pessoas (mulheres, crianças, idosos e trabalhadores) (...). ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 5)
Por último no que interesse ao tema, tem-se a terceira dimensão de direitos fundamentais (ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 5), que abraça direitos de natureza difusa, titularizados pela coletividade como um todo, não tal ou qual indivíduo ou mesmo uma parcela individualizável; a titularidade é indistinta e o direito material tutelado é incindível. É nesta categoria que se encontra o meio-ambiente ecologicamente equilibrado (ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 7 e GRANZIERA, 2015, p. 56).
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado - direito de terceira geração - constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais, realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas, acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade (STF, MS 22.164/SP, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello, j. 30.10.1995, D/ 17.11.1995).
A ideia de que os direitos fundamentais possam ser garantidos de forma isolada esbarra no fato de que essa divisão dimensional é meramente histórica e acadêmica, haja vista que tais direitos devem ser encarados como parte de um todo, um único bloco de direitos fundamentais cujo objetivo é resguardar a dignidade humana. Não há meia dignidade, ou ela é garantida ou não; se há vida e não há saúde, não se tem dignidade.
É por tal razão que não basta uma abstenção do Estado para garantir, por exemplo, o direito à vida, se o mesmo Estado não agir para proteger o meio-ambiente e a vida se tornar insalubre.
Fixada a premissa de que os direitos fundamentais são uma unidade e só podem ser garantidos efetivamente de forma global e não unitária pela posição do Estado, de modo ativo ou passivo, é preciso voltar a atenção para essa atuação do Estado e na maneira como são garantidos tais direitos.
A Efetivação de Políticas Públicas e a Teoria da Reserva do Possível
Hodiernamente, o Estado é separado em um sistema de tripartição que retoma conceitos há muito esboçados (LENZA, 2018, p. 544-545), cujos pormenores não interessam para a presente obra. Interessa dizer que hoje, coexistem três poderes que devem atuar de forma harmônica entre si, os quais funcionam entre si com um sistema de freios e contrapesos, ou seja, um poder exerce poder sobre o outro e todos eles têm suas funções típica e atípicas (LENZA, 2018, p. 549-552).
Tipicamente cabe ao Executivo aplicar lei de ofício; ao Legislativo o processo de elaboração de lei; e ao Judiciário aplicar a lei ao caso em concreto, quando provocado (LENZA, 2018, p. 549-552). À luz desse esquema, elaborado, a Constituição Federal Brasileira de 1988 também adotou, em seu artigo 5º, inciso XXXV, o sistema norte-americano e deu a última palavra ao Judiciário (BRASIL, 1988). É dizer que todo e qualquer conflito ou disputa existente será resolvido pelo Poder Judiciário, e isso inclui os conflitos que envolvem a implementação e concretização de direitos fundamentais, nos quais o Estado pode ser (e geralmente é) o principal alvo de demandas judiciais que tem por objeto os direitos fundamentais, neles incluído o meio ambiente.
É neste ponto que o tema começa a enfrentar os aspectos mais polêmicos e que merecem atenção. E isso ocorre porque apesar da unidade com que deve ser vista os direitos fundamentais, a implementação deles se dá através de políticas públicas, o que é, naturalmente, uma função típica do Executivo, podendo passar pelo processo legislativo, tipicamente uma atividade do Legislativo (CARVALHAES, 2019, livro eletrônico).
De acordo com Maria Paula Dallari Bucci,
Política Pública é programa de ação governamental que resulta de um conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados (BUCCI, 2006, p. 39)
Dessa forma, a política pública é um instrumento do Estado com finalidade de atender às necessidades da população, sempre com o objetivo final de se promover o bem comum (CARVALHAES, 2019, livro eletrônico).
Ocorre que o “bem comum” é, em parte, um conceito jurídico indeterminado, pois quanto maior o grau de abstração da política pública, evidentemente que mais distante da realidade e mais difícil de se medir os resultados, pois fatalmente envolverá um sem-número de nuances que podem interferir. É possível, por exemplo, concretizar o direito fundamental à vida garantindo determinado medicamento para quem dele necessita. Mas não se tem essa mesma facilidade de se enxergar causa e efeito quando se está diante de medidas abstratas, como, por exemplo, se aumentar o contingente de policiamento garante, efetivamente, a segurança. É evidente a relação e o objetivo da medida, mas o seu acertamento vai depender da forma como se distribui esse contingenciamento, do local em que ele atua, dos instrumentos à disposição, entre outros.
Pois bem, não é preciso se alongar para notar que há uma dificuldade prática impossível de se ignorar quando falamos de políticas públicas (CARVALHAES, 2019, livro eletrônico). Sabendo que são as políticas públicas um dos meios através dos quais os direitos fundamentais são implementados, retoma-se o mencionado ao início quanto ao déficit existente entre o ideal e o real da concretização dos direitos fundamentais, e parte disso se deve ao fato de que a avaliação das políticas públicas é árdua tarefa.
Para melhor compreender as políticas públicas em seu aspecto jurídico, é necessário frisar que sua formulação passa pela Administração Pública (latu sensu) e envolve decisões de Governo, que se baseiam no aspecto político.
Essa compreensão é fundamental pois concatena os pontos acima trabalhados. As decisões políticas não são tomadas pelo arbítrio de quem ocupa uma posição temporária na cúpula da administração, mesmo quando há o elemento da discricionariedade administrativa, há de existir um lastro legal.
O princípio da liberdade, que norteia a vida privada, conduz à afirmação de que tudo o que não estiver disciplinado pelo direito está abrangido na esfera de autonomia. (...)
Já o exercício de competências estatais e de poderes excepcionais não se funda em alguma qualidade inerente ao Estado ou a algum atributo do governante. Toda a organização estatal, a atividade administrativa em sua integralidade e a instituição de funções administrativas são produzidas pelo direito. Logo, a ausência de disciplina jurídica tem de ser interpretada como inexistência de poder jurídico. Daí se afirmar que, nas relações de direito público, tudo o que não for autorizado por meio de lei será reputado como proibido (JUSTEN FILHO, 2018, livro eletrônico).
Nesse sentido, o gestor público deve se escoimar no princípio da legalidade pois ele não tem outra posição senão a de preposto do povo (JUSTEN FILHO, 2018, livro eletrônico). E como afirmado acima, a legalidade que se impõe ao Estado é a qualificada, isto é, ao Estado somente se permite agir se assim a lei permitir (JUSTEN FILHO, 2018, livro eletrônico), já que a lei é o produto final do processo legislativo democrático, do qual participam os membros do legislativo, que, por sua vez, foram eleitos pelo povo.
É uma conclusão lógica do fato de que é a lei que diz o que é interesse público, tido por bem comum, e o fim do Estado é o bem comum, logo, deve o administrador público se ater aos limites da lei. Ou seja, as políticas públicas passam pela existência de uma lei e a atuação ativa do Estado a fim de fazer a lei ser aplicada.
Isso seria suficiente para resolver a questão se o mundo ideal fosse alcançado, mas, como não é, o problema persiste. E persiste porque a lei tem característica de ser, em regra, genérica e abstrata, isto é, ela é naturalmente feita sem considerar uma realidade fática em suas particularidades.
O efeito disso é deslocar para o gestor público o mérito, a discricionariedade de qual política pública vai se adotar e como. Não se trata, reforça-se, de uma escolha de aplicar ou não, ela deve ser adotada. O que é discricionário é o modo.
Em relação à proteção do meio-ambiente, as dificuldades práticas ficam ainda mais claras. Afinal, sendo tanto o direito material como os destinatários abstratos, a medida da assertividade ou não de determinadas políticas públicas se torna ainda mais problemática.
À esta altura, também é digno mencionar que surgiu em defesa do Estado a teoria da reserva do possível. Referida teoria defende, e não sem nenhuma razão, a existência de dificuldades práticas e orçamentárias para garantir todos os direitos fundamentais, resultando nas chamadas “escolhas trágicas”, nas quais se privilegia um direito em detrimento de outro (CARVALHAES, 2019, livro eletrônico).
A respeito da reserva do possível, ou também chamada de teoria das restrições das restrições, não se pode simplesmente reduzi-la à falta de dotação orçamentária pelo Poder Público para justificar o descumprimento das obrigações constitucionais e, por consequência, a limitação de direitos fundamentais, sem antes verificar a razoabilidade da pretensão.
Não se está a ignorar a reserva do possível e que a concretização de direitos culmina em custos, mas se a pretensão de direito material tiver potencial de beneficiar a coletividade, tal como na implantação da Defensoria Pública para atendimento jurídico e gratuito aos necessitados, desde que não esbarre em limites aferíveis, há de prevalecer (CARVALHAES, 2019, livro eletrônico).
Fato é que tal teoria acabou por tornar uma verdadeira muleta da administração pública, que, sendo demandada judicialmente, passa a defender sua falha na implementação de direitos fundamentais sobre o argumento comentado, advogando a impossibilidade de concretizar um direito específico sob pena de prejudicar a coletividade (CARVALHAES, 2019, livro eletrônico), não sendo incomum se deparar com esse tipo de argumentação principalmente nas demandas que exigem intervenção médica por quem não possui recursos financeiros (STJ, AREsp: 1986749 PE 2021/0299251-8, online) ou mesmo quando existem atividades ou atos potencialmente poluidores, que afetam o meio-ambiente (STJ, REsp 2041949 CE 2022/0378166-9, online).
Em relação ao primeiro exemplo, a falibilidade da teoria é perceptível in primo icto oculi, já que não pode o Estado recusar a implementação de direitos fundamentais sob o argumento de impossibilidade fática ou orçamentária (STJ, REsp 2041949 CE 2022/0378166-9, online); não pode o Estado se ocultar de sua própria finalidade, que é o bem comum e a proteção da dignidade da pessoa humana, como já citado.
Também se presta a afastar o argumento o fato de que a garantia do resultado nesse tipo de caso concreto é bastante próxima com a medida a ser adotada. Fornecer determinado medicamento a quem dele necessita, com amparo médico, tem um resultado identificável de forma muito mais simples.
De outra sorte, a alegação genérica de que prejudicará o orçamento e implementação de outras políticas públicas sempre esbarra na falta de comprovação disso (STJ, REsp: 1225349 MG 2010/0207468-0); nem é crível que um tratamento individual possa prejudicar toda coletividade interessada, principalmente considerando o tamanho do orçamento do Estado, que pode ter suas complicações quando tratamos de problemas maiores do que um tratamento de saúde específico.
As decisões judiciais são inúmeras e em esmagadora maioria afastam esse escudo estatal e salvaguardam, acertadamente, diga-se de passagem, o direito fundamental do indivíduo.
Entretanto, em relação ao segundo exemplo citado, da judicialização das políticas públicas e defesa dos direitos fundamentais tratado do meio ambiente, o tema ganha maiores contornos e maior problematização.
A Tutela Ambiental e o Poder Judiciário
Como mencionado, a defesa do meio ambiente não se trata de uma opção, mas sim de uma obrigação. Todavia, essa obrigação tem um certo grau de liberdade quanto à forma que será feita (MIRRA, 2017, online); liberdade conferida não pela opinião do administrador público, mas dada a própria natureza deste direito e a função típica exercida, que tem arrimo constitucional (GRANZIERA, 2015, p. 7).
Tendo isso em vista, não se pode ignorar que – frisa-se – o Estado não pode se furtar de suas obrigações ontológicas, dentre elas a promoção do bem comum e a defesa dos direitos fundamentais (MIRRA, 2017, online). Não pode, portanto, o Estado abster-se de adotar medidas concretas e efetivas à promoção e salvaguarda do meio-ambiente.
Entretanto, é preciso levar em conta que a situação envolvendo o meio ambiente, como já antecipado acima, é mais sensível porque os resultados não são perceptíveis da mesma forma como se pode constatar, por exemplo, em um caso de direito à saúde em uma situação concretamente considerada, pois o liame entre causa e efeito é consideravelmente mais distante.
A razão pela qual o tema é mais sensível é justamente por conta dessa imprecisão de meios para medir os resultados práticos das políticas públicas. A distância entre a realidade e o mundo real fica ainda mais sobressaltada quando se considera que a política pública é abstrata e o direito também o é, ou seja, o fato de não se poder medir o impacto concreto no patrimônio jurídico de um indivíduo traz à tona o impacto de todas as nuances que interferem na implementação das políticas públicas, tal qual no exemplo acima da segurança pública e o contingenciamento policial (PAULA, 2019, p. 134).
Faz-se uma ressalva de que, evidentemente, estar-se-á considerando as situações ordinárias nas quais há uma política pública implementada e que pode vir a ser efetiva, não de casos em que há uma medida puramente nominal, ou mesmo quando sequer existe uma política pública.
Retomando o exposto alhures, qualquer conflito que verse sobre a questão ambiental, pela forma como organizado o Estado, desaguará no Judiciário, que terá a última palavra sobre a falha ou não do Estado na situação de fato subjacente ao processo (GRANZIERA, 2015, p. 794-796). E essa última palavra, tal como a discricionariedade cabe ao Executivo, cabe ao Judiciário porque assim quis o constituinte.
Afinal, se isso decorre de uma imposição legal, que é a manifestação no mundo real do interesse público, não pode o Judiciário subverter esse esquema de equilíbrio entre os poderes e definir, ele próprio, a política pública.
Até mesmo porque o Judiciário é o Poder com déficit democrático e a ele não foi outorgado qualquer poder de representação da população (PAIVA, HANSEN, MATTOS, 2020, p. 50). Sua atuação precípua é a promoção e aplicação da ordem jurídica ao caso concreto, com supedâneo da Constituição, que é o ápice do ordenamento.
Isto é, o desempenho da atividade administrativa pelo Poder Judiciário consiste em uma atípica, secundária, sendo justificada e se pautando como instrumento para a realização da atividade jurisdicional. Durante tal atuação, o poder mencionado deve cumprir com os princípios administrativos, em especial, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência, assim como com o princípio democrático (PAIVA, HANSEN, MATTOS, 2020, p. 59).
Acerca disso, entende-se que o ônus da prova quanto à existência da política pública e os motivos pelos quais ela pode ter sido afetada deve ser do Estado (ANDRADE, MASSON, ANDRADE, 2018, p. 228-238). Se o ente público produz prova suficiente de que há uma medida existente e ela é potencialmente efetiva, deve ser prestigiada essa política pública.
Notadamente que isso deve ser feito cum grano salis pois, como sobredito, o que se examina é o potencial para o fim almejado. Diz-se potencial porque a controvérsia sobre a efetividade da medida não pode ser solucionada pelo Judiciário. É claro que existe a chance de seja determinada uma medida melhor, mas há também a chance de ser pior, e por se tratar do mérito administrativo, isso se afasta do campo de atuação do Judiciário.
O que não parece possível é que diante de um impacto circunstancial seja desconsiderada toda existência de uma política pública legítima para o Judiciário invadir uma competência para a qual não é vocacionado.
CONCLUSÃO
Traçados e abordados os principais elementos, fáticos e jurídicos, que provêm da judicialização das políticas públicas de defesa do meio ambiente, conclui-se que é possível, aliás, é dever do Judiciário apreciar esse tipo de demanda, cujo aprofundamento, entretanto, deve ser limitado à existência da política pública e seu potencial para o fim almejado.
O primeiro aspecto no qual deve recair a atividade cognitiva do Judiciário é se existe a política pública. Se não existe, deve-se determinar que se implemente; mas é esse o limite do referido Poder. Não pode ir além disso porque, em um primeiro momento, trata-se de uma escolha que cabe somente ao administrador público, trata do mérito administrativo.
Avançando, se tal demanda chega ao Judiciário e se constata a existência da política pública, o exame pode ser mais detalhado, mas, ainda assim, não pode adentrar ao mérito administrativo.
Com efeito, a usurpação do mérito administrativo pelo Judiciário é uma forma de agredir a separação de poderes e o esquema constitucional tecido para que eles funcionem de forma harmônica. Daí por que a providência jurisdicional nestes casos deve se autoconter na determinação de que se adote determinada política pública.
Se é possível verificar, concreta e seguramente que a medida é falha ou meramente performativa, deve ser determinado que se adeque a política, preferencialmente apontado os pontos que demonstram sua ineficácia para que o administrador, usando de sua discricionariedade, adote as providências cabíveis.
Nesse ponto, a teoria da reserva do possível se mostra, respeitadas as vozes em contrário, muito mais sólida e crível, afinal, uma política pública pode ser mais ou menos onerosa ao erário e isso não necessariamente reflete o seu resultado.
O que certamente atingirá o erário é a adoção de uma política pública ineficaz, seja mais ou menos custosa. E isso se agrava quando a política é escolhida pelo Judiciário.
Não se olvida que certamente haverá quem questione se a apreciação da efetividade também adentrará ao mérito, mas não parece ser o caso, já que o que deve ser examinado são os dados concretos trazidos pelo Estado ao processo e o nexo de causalidade com o resultado perseguido, que, no caso, é a verificação se a medida adotada tem condições de chegar a esse objetivo.
Evidente que cada caso terá suas peculiaridades que demandarão maior ou menor esforço de quem for o encarregado de enfrentar o tema, mas, novamente, o ideal e o real no direito não costumam caminhar lado a lado, o que não pode servir de fundamento para se abandonar aquilo que deve ser feito.
Também não se ignora a possibilidade de que determinada ordem para que se adotem políticas públicas seja ignorada pelo gestor público destinatário. Tal fato é deveras mais problemático, contudo, não parece que a solução passe por atropelar o equilíbrio e competências de cada um dos poderes, constitucionalmente desenhado.
A lamentável hipótese imaginada passa mais por um ordenamento jurídico que assegure a responsabilização dos gestores desidiosos e dê espaço aqueles realmente comprometidos com a causa pública. Do contrário, seja pelo Judiciário ou Executivo, as políticas públicas seguirão inefetivas e o embate se arrastará para além do tempo.
REFERÊNCIAS
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Arthur Atavila Casadei