Em tempos de concorrência acirrada, proteger o território comercial virou uma espécie de “jogo de estratégia”. E, nesse jogo, a cláusula de raio atua como peça-chave no tabuleiro dos shopping centers. Se, por um lado, a condição garante exclusividade, por outro, impõe limites geográficos aos sonhos de expansão dos lojistas. Mas em que medida essa barreira protetora é uma vantagem ou um freio para o desenvolvimento dos negócios? A resposta não é tão simples – afinal, nas relações contratuais, a linha que separa a proteção do aprisionamento é sutil.
A cláusula de raio em contratos de locação em shopping centers é amplamente utilizada para proteger os interesses tanto dos lojistas, na condição de locatários, quanto dos próprios shopping centers, como proprietários e administradores dos empreendimentos. Essa cláusula impõe uma limitação, impedindo as partes de instalar outro estabelecimento semelhante, do mesmo ramo ou com potencial concorrente, em um determinado raio de distância, assegurando a exclusividade territorial de segmentos específicos do comércio.
Essa cláusula normalmente é proposta pelo locador, buscando proteger o investimento no shopping center e garantir que não haja concorrentes hábeis a dividir o fluxo de clientes e, assim, afetar as vendas dos lojistas. Torna, teoricamente, o ambiente comercial mais atraente e estável.
Entre as vantagens da cláusula de raio, destaca-se a proteção da exclusividade e a atratividade do shopping para o público consumidor. Essa disposição permite que o locador – o próprio shopping – tenha maior controle sobre o planejamento do tenant mix,[i] assegurando que o empreendimento se mantenha um destino diferenciado e competitivo no mercado. A cláusula contribui ainda para a preservação do valor dos aluguéis, uma vez que o fluxo de clientes, essencial para a valorização dos espaços locados, é incentivado pela exclusividade geográfica de segmentos específicos.
Em contrapartida, a cláusula de raio também traz algumas desvantagens para o shopping na condição de locador – eis que poderia ver restrita sua capacidade de locação dos espaços com novas marcas ou lojas com segmentos similares àquelas cujas cláusulas de raio restou pactuada, inclusive limitando o tenant mix. Além disso, a existência dessa cláusula pode dificultar a renovação de contratos e gerar desinteresse entre lojistas em potencial, que podem ver a limitação geográfica como um empecilho à expansão e flexibilidade de atuação.
Sob outra ótica, menos frequente, a cláusula de raio também pode ser proposta pelos locatários/lojistas, quando buscam proteger e garantir sua posição no mercado. Nesse cenário, a cláusula de raio surge como garantidora da harmonia no espaço, evitando que o ambiente de consumo se transforme em um caos de concorrência desnecessária. Assim, entre as vantagens da utilização da cláusula de raio, os lojistas (locatários) garantiriam menos concorrentes diretos, podendo gozar de maior fatia de mercado e, potencialmente, de maior lucratividade. Haveria, ainda, uma construção mais forte de marca e a fidelização da clientela.
Por outro lado, a cláusula de raio poderia restringir a capacidade de expansão desses lojistas em áreas adjacentes, bem como impedi-los de acessar locais que ofereceriam performances potencialmente melhores e resultados mais atrativos – tornando o lojista verdadeiramente dependente do shopping para auferi de receita. Ainda, a disposição poderia reduzir a flexibilidade do lojista em responder rapidamente às mudanças no mercado.
Muito embora não haja previsão na Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91) acerca da chamada cláusula de raio, o artigo 54 dá autonomia às partes (lojistas e empreendedores de shopping center) para que pactuem, livremente, as condições que lhes forem mais benéficas, respeitadas as disposições procedimentais previstas em lei.
A discussão em torno da cláusula de raio é travada sob duas óticas: a primeira, da validade e eficácia das cláusulas contratuais, levando em consideração o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), que justifica, portanto, sua validade; a segunda, sob a ótica de eventual limite do exercício empresarial pelos lojistas, diante dos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência, e das normas infraconstitucionais que reprimem o abuso de poder econômico, justificando, portanto, a sua invalidade.
A liberdade na contratação encontra guarida tanto na Lei do Inquilinato, quanto no Código Civil. Isso porque o princípio da autonomia privada (assegura a liberdade das partes na contratação e na estipulação daquilo que melhor atende aos seus interesses). Evidentemente, contudo, que essa liberdade não é ilimitada, pois necessária a observância de preceitos de lei, e o respeito à liberdade contratual nos limites da função social do contrato, conforme o art. 421 do Código Civil.
Fato é que se faz necessária a observância de alguns critérios para assegurar a eficácia e até validade de eventual cláusula de raio. É importante, por exemplo, a definição do raio – com clara especificação da distância e da área abrangida –, as consequências da violação, bem como sua vigência.[ii] Uma cláusula de raio bem redigida obstaculiza eventual reconhecimento de abusividade, acaso a controvérsia seja judicializada.
O cuidado com o consumidor também é fator importante para afastar eventual nulidade da cláusula de raio, que não pode sacrificar o equilíbrio do mercado de maneira que prejudique o consumidor. No ponto, o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor veda práticas abusivas que coloquem o consumidor em desvantagem excessiva ou que prejudiquem a livre concorrência. Ou seja, há de se ter cautela com as limitações à oferta impostas por disposições dessa natureza.
A cláusula de raio ainda é uma questão em discussão na legislação e jurisprudência brasileiras. Assim, é fundamental a avaliação dos limites de sua estipulação caso a caso – sempre resguardando os interesses tanto do lojista, quanto do shopping center e seus frequentadores.
É evidente, portanto, que a cláusula de raio é uma interessante ferramenta para proteger o locador e seu investimento, bem como para conferir garantias ao locatário. No entanto, a sua validade depende de um cuidadoso equilíbrio entre os direitos e deveres das partes, observando-se, sempre, quando de sua redação, a autonomia privada, a boa-fé objetiva e a função social do contrato. Portanto, revela-se imprescindível contar com uma assessoria jurídica especializada para enfrentar com segurança e assertividade os desafios legais envolvidos.
A elaboração e posterior análise da cláusula de raio devem considerar não apenas suas implicações, como também suas consequências no mercado, para que, então, produza, de fato, um ambiente comercial justo e que não inviabilize, por exemplo, a livre concorrência. Independentemente do contexto em que inserida, a utilização da cláusula de raio dependerá de análise também do contexto do mercado, que se altera com o passar dos anos, fazendo-se necessária sua constante revisão, com vistas a assegurar o enfrentamento das novas dinâmicas estabelecidas nesse contexto.
A equipe do escritório Eichenberg, Lobato, Abreu & Advogados Associados está à disposição para prestar os esclarecimentos necessários e oferecer o suporte adequado sobre o tema.
Luísa Scherer Beier
[i] Tenant mix (mix de locatários, em tradução livre) é a organização das lojas dentro do shopping center, de forma que atendam às características de seu público-alvo. Assegurar o tenant mix adequado exige que se realize um vasto estudo de viabilidade, também a fim de organizar e distribuir adequadamente os estabelecimentos dentro do perímetro do shopping center. SOUZA, Leonam Machado de; ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. Cláusula de Raio sob a Perspectiva do Direito Civil-Empresarial. Revista EMERJ, v. 18, n. 68, p. 105, 2015. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/92193/clausula_raio_sob_souza.pdf. Acesso em: 29 out. 2024.
[ii] Em decisão de julho de 2024, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça analisou caso em que um restaurante japonês e um shopping center celebraram contrato de locação com exclusividade para exploração de culinária japonesa no empreendimento por cinco anos. Após 12 anos do pacto, outro restaurante do segmento foi instalado no local, levando à insurgência do primeiro locatário. A Terceira Turma decidiu, por maioria, que o shopping não havia agido de forma irregular, em razão do fim do prazo pactuado pelas partes. Em: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n.º 2101659/RJ. Recorrente: Rio Design Barra Shopping Center Ltda. Recorrido: Dai Ni Seiki Alimentos e Utensílios Ltda - EPP. Relator: Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, 21 maio 2024.